segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

A bela adormecida – sem frescuras e nem firulas.

O feitiço de uma velha e má bruxa ruiva a fez dormir profundamente encerrada em seu majestoso castelo. Eram, então, os tempos de príncipes e virgens princesas, castelos e dragões, feitiços e contos de fadas. Ela fora esquecida placidamente em seu leito enquanto os anos se passavam. O jardim em volta do castelo tornou-se uma floresta encantada e o mato invadiu-o por dentro em cada canto. Um dia, um belo príncipe em seu branco corcel cruzando a floresta recordou-se da tal lenda. Adentrou a abandonada fortaleza encontrando a bela e adormecida virgem princesa deitada serenamente em seu dossel. Dormia profundamente como um cadáver fresco e preservado. Era tão bela que lhe provocou desejos primitivos. Sacou, então, das calças sua espada latejante e penetrou com ela a bela adormecida que não despertou apesar de tanto empurro e repuxo. Depois de saciar-se, o belo príncipe tirou o corpo e foi-se embora para nunca mais. Os dias se passaram tornando-se meses enquanto o bucho da bela princesa adormecida crescia feito uma abobora tal era o estado interessante em fora abandonada. Ao fim de nove meses uma linda criancinha saiu de entre as suas pernas enquanto a mãe inerte continuava dormindo seu sono eterno. O rebento andou feito uma lagarta procurando o peito e tudo que conseguiu foi a ponta de um dedo que chupou avidamente quebrando o encanto secular e despertando finalmente a bela adormecida num piscar de olhos. E mãe solteira e filha bastarda viveram felizes para sempre.

22.02.09

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Papel de seda.

Era uma solitária, doce e bondosa velhinha. Exatamente como seria a minha ou a sua vovozinha. Ao acordar com o trinado dos passarinhos, rezava um Pai Nosso e uma Ave Maria. Alimentava os gatos, depois fazia tudo que tinha de ser feito em sua pequena moradia. Havia umas plantinhas semelhantes a uma erva que cuidava com muito zelo numa horta no fundo do quintal. Aos domingos pela manhã ia à missa da paróquia e à tarde fazia geléia de laranja. Sua geléia era famosa e deliciosa, mimo presenteado a parentes e vizinhos escolhidos a dedo. No final da tarde, tomava um longo banho morno. Empoava-se com talco fino e passava colônia de alfazema. Sentava-se toda arrumada na cadeira de balanço na varanda do quintal com uma caixa de lata de biscoitos no colo de onde saía uma bíblia e um pacotinho de papel de seda. De outra latinha, tirava um pouquinho da erva de sua horta e a embrulhava no papel de ceda, apertava um cigarrinho. Abria a sua bíblia e enquanto lia e orava, fumava seu baseado.

17.02.09

domingo, 15 de fevereiro de 2009

No calor da noite.

De dia, era a distinta professora de música do grupo escolar da cidade. Temente a Deus. Vestia-se como uma missionária e sempre carregava o violino numa caixa branca. Não fumava, não bebia, não jogava. Único vício era o banho de cachoeira, longe de olhares curiosos. Sua pequena casa era graciosa com um jardim de rosas na frente. No quintal, um estreito portão de ferro dava acesso ao atalho tortuoso para uma escondida cachoeira. Vivia apenas com três gatos. Dormia em cama de solteiro. A rotina diária era a mesma. Manhã, na escola, as tardes eram das roseiras e as noites do violino. Sábado, a faxina e a feira no largo. Domingo, a igreja pela manhã e o descanso merecido à tarde. Já bem tarde, em noites de lua cheia e calor, era arrebatada por um frêmito enquanto a cidade sonhava profundamente. A distinta professora escapulia pelo portão dos fundos e ia de fininho até a cachoeira no meio do mato, guiada pelo luar. As roupas eram postas cuidadosamente dobradas sobre uma pedra. Sentava-se em outra, sob a queda d'água a beijar-lhe entre as pernas e provocar-lhe inconfessáveis ondas de prazer.

14.02.09

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Sem quebra gelo.

O silêncio era sepulcral. Numa mão, agulha, linha e artrose. Na outra, um retalho para ser remendado a outro. A luminária ao lado piscava vez por outra ou seriam já seus olhos? Sua respiração era suave, o olhar perdido e melancólico era solitário. Os pensamentos visitavam um tempo distante. As lembranças do passado eram recorrentes embora nem lembrasse que dia era hoje. Ela era jovem, então. Ele tinha quase a mesma idade, só um pouco mais velho e era o dono do mundo. Ardia de paixão incontrolável por ele. Ela era imatura, mimada. Deveras orgulhosa. Um dia ele disse-lhe uma coisa. Ela entendeu outra e não gostou. O mal entendido não foi desfeito. Ao contrário ficou como estava. Criou-se uma tensão que os separou silenciosamente. Nunca houve o pedido de desculpas, a retratação. Nenhum esforço de reconciliação. Apenas o silêncio reprimido e empáfia. Os dois se amavam, mas um esperava o outro quebrar o gelo. O tempo foi passando e no final só restaram dois velhos solitários. Ela ocupava seu tempo fazendo colchas de retalhos. E ele tentava lembrar as feições belas daquela jovem que tanto amou.

06.02.09

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Viagem.

Ele vai para longe. Bem longe. Finalmente, a viagem de férias sonhada. Nos lábios, um suave sorriso de satisfação. A vida inteira pensara nisto e finalmente aconteceria. Estava todo arrumado como no dia do casamento. A companheira de tantos anos não iria junto desta vez. Por isso choramingava. A casa transbordava de amigos. Vieram se despedir. Conversavam baixo, lembravam de estórias engraçadas. Reminiscências de anos de camaradagem. Tomavam café, água e bebidas pesadas. Na mesa comedida, alguns acepipes para matar a fome. O anfitrião estava tranqüilo. Dava atenção a todos e era o centro das atenções. Quando chegou a hora, o ataúde foi lacrado e levado pelos amigos ao cemitério. Sua jornada começara. Ou talvez terminasse ali, quem sabe.

08.02.09

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

No mundo da lua.

Era tão linda que doía. No rosto, o sorriso senil de sempre. De que sorriria tanto? Na cabeça, um vácuo. Achava tudo lindo. Uma perfeita idiota feliz. O olhar perdido, às vezes triste. Ele a viu uma vez, não a esqueceu mais. Como podia ser tão linda e feliz o tempo todo, pensou. Quis vê-la mais vezes. Encontrou-a certo fim de tarde sentada no gramado assistindo o por do sol. O que está fazendo, perguntou curioso. Vendo o por do sol, respondeu alegre. Como é lindo, acrescentou. Mal se falaram enquanto isso. Muda, contemplava o por do sol como se fosse o ultimo da face da terra. Ele foi embora depois disso. Voltou à noite. Ela continuava no mesmo lugar. E agora? Perguntou. Agora estou vendo a lua, respondeu com um largo sorriso e olhar iluminado.

29.01.09