terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Louca

Ela se achava louca. Mas de louca, não tinha absolutamente nada. Havia para tanto uma explicação: isto é o que em casa lhe diziam: você é maluca, sua louca. E foi assim que a pobre quase perdeu a razão. As palavras domésticas são as mais poderosas, capazes de tornar em gênio um idiota, ou quebrar a alma de um inocente. Ela era uma tristeza só, naquele ambiente insano. Não havia mulher mais doce e querendo acertar nas coisas do mundo do que ela. O sorriso era fácil como o de uma criança, por trás do olhar triste e angustiado. Uma mulher apagada. Um dia, ela se cansou daquilo tudo, muniu-se coragem, arrumou as trouxas e tomou um chá de sumiço. Sumiu como por encanto. Em casa, na falta de quem se tornasse o maluco da vez, passaram a culpar uns aos outros pela falta que fazia aquela louca. Longe daquela gente, ela descobriu a maravilha da vida ao reencontrar a sua sanidade. Nunca mais ouviu-se falar dela.

26.12.09

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Fruta fora da estação, ou de como ela finalmente virou mulher grande.

Era aquele mulherão. Não havia este homem que não a desejasse. Só havia um porem que os acabrunhava. Sua cabecinha funcionava como a de uma menininha mimada. Era boba demais para aquela sua idade. Ainda estava muito verde. Nunca vi nada igual, mas não era retardada, não. Só era imatura demais para aquele corpão de mulher grande. Parecia uma fruta fora da estação. Um dia, ela teve uma inspiração. Ficou imóvel, observando a árvore no quintal de sua casa. Olhava, e olhava sem dizer palavra. Parecia estar num transe. Não demorou muito, trepou num galho e ficou de cabeça para baixo prendendo-se pelas pernas dobradas. Eram formidáveis aquelas pernas. A boca sempre calada. Ficou assim até a exaustão, quando soltou-se finalmente e espatifou-se no chão. Amadureceu.

09.12.09

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

As atarantadas.

Eram amigas unidas feito carne e unha. Quase irmãs. Dividiram até o berço algumas vezes. Falavam animadas pelos cotovelos quando se encontravam, e como tinham o que falar, embora fosse sempre o mesmo assunto. Na infância, eram criancices. Na adolescência, eram bobagens. Na faculdade, eram futilidades. Quando adultas, era pura sacanagem. Ao envelhecerem, lembravam dos velhos tempos. Falavam sempre ao mesmo tempo balançando os braços como duas afogadas no meio do oceano de palavras até cansar, embora dificilmente uma prestasse atenção no que a outra dizia. Mas eram grandes amigas, antes de tudo e isto é o que importava. Quando uma delas morreu de morte natural, a outra ficou muda.

25.11.09

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Saudades

Semana sim, semana não ela abria o armário e tirava de dentro roupa por roupa e as pendurava ao sol no varal. As que estavam amarelando, tinham destino certo no tanque, para serem lavadas à mão com todo cuidado. Ela usava o amaciante com a fragrância que ele mais gostava. Depois de enxutas, eram engomadas e, em seguida, voltavam ao armário para se juntarem às que ficaram ao sol. Vez por outra, um botão que caia era costurado de volta ou um pequeno reparo se fazia necessário. Aquelas roupas estavam ficando muito velhas como ela própria. Ela repetia ano após ano aquele pequeno ritual, como um tributo ao seu falecido e estimado marido.

26.07.09

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Estória verdadeira

Ela era uma mulher feia, mas com a autoconfiança maior que ela. Apaixonou-se pelo garoto mais bonito da escola. Um verdadeiro príncipe louro encantado. Você será meu namorado, avisou-lhe confiante. Todos riram, fizeram troça dela. Ninguém a levava mesmo a sério. Porém, ela não largava do pé do coitado. Sabia seduzir mesmo sem ser bela. Era simpática e sempre bem humorada. Difícil foi resistir a tais encantos. Um dia, roubou-lhe um beijo, e no outro, pagou-lhe um boquete. De amores o príncipe caiu sobre aquela feiticeira. Do escurinho do cinema ao altar foi questão de paciência. Finalmente ela casara com o seu príncipe encantado. Logo veio o primeiro e o segundo filho. O terceiro veio antes do quarto e do quinto. Sem que ela percebesse, seu príncipe tornara-se preguiçoso. Perdera os cabelos loiros. Tornou-se barrigudo e flatulento. Afinal, este não é nenhum conto de fadas.

18.07.09

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Um homem do povo.

Ele nunca se fez de mártir ou coitado. Ao contrário, tinha cara de um cão revoltado. Também não falava manso, parecia sempre puto. Por isso era amado por todo mundo. Prometia transformar o mundo. Todos deveriam ser iguais. Falava de igual para igual. Até rasgava a gramática para ser chamado de homem igual a nós. A gente miúda e os cegos seguidores o transformaram em mito. Mas não era nada disso. O homem era um canalha. Usava a ignorância alheia para subir na vida e fazer seu pé de meia. Em seu mundo distorcido, os amigos não tinham máculas, embora fossem todos bandidos, mas eram tratados como homens de bem. A final, uns eram mais iguais que outros. Um dia este bem afortunado, deu um golpe de mestre e se tornou presidenta da republiqueta.

28.06.09

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Memorial a um cara bebedor.

O cara bebia todas. Cachaça, cerveja, conhaque ordinário e vodca nacional. Não rejeitava líquido que incluísse o destilado. Água era como remédio ruim, fazia uma careta. Seu gosto pelas bebidas era um namoro antigo. Só nunca provara perfume, não chegava a tanto... Bebia porque era líquido. Fosse sólido, seria obeso. O cara era magro feito um defunto, e mais conservado que uma múmia. Apesar disso, tinha lá suas habilidades. Tinha jeito com os pincéis, por exemplo. Pintava belos quadros. Havia talento e futuro naquele rapaz, mas ninguém o reconhecia. Bebia para afogar a mágoa, por isso. Vivia trôpego a fluir álcool pelas veias. Faltava-lhe o vil metal, para variar. Não vendia um só quadro. Trocava-os por birita. Um admirador não afeiçoado à bebedeira às vezes pagava-lhe um copo. Quando estava naqueles dias, o cara fazia-lhe a maior festa ao encontrá-lo, e terminava ganhando dele uma dose. Mas em seu estado sóbrio, passava por ele calado, olhando de través e desconfiado.

18.04.09

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Teimosia.

Ele amava viver. Viveu um bocado. Fizera de tudo. Vira de tudo na vida. Ao completar 80, tinha saúde de um touro. Temia ir embora dormindo. Era um teimoso e determinado a enganar a morte. Por isso, só tirava pequenos cochilos. Assim a morte jamais o pegaria desprevenido. Ao chegar aos 100, o velho coração ainda batia como um bebê. Morreu sentado em sua cadeira favorita, assistindo seu programa de TV favorito.

01.04.09

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Cinco gotas de ironia.

Pai e filha tanto se amavam como se odiavam. Um era o espelho do outro. O amor vinha em forma de julgamento e condenação. Ela nunca cresceria mesmo sendo mulher adulta. Jamais deveriam existir sob mesmo teto, não dependesse ela emocionalmente dele. Viviam brigando. Insultos e verdades eram jogados na cara entre berros e lágrimas. Um tremendo pastelão. Para ela, o pai estava mais louco a cada dia. Para ele, a filha precisava de um médico de cabeça urgente. Dois loucos no mesmo balaio. Cada um visitou um especialista às escondidas. Tudo era feito com mistério naquela casa. Um amigo dele prescreveu uma receita. Bastavam cinco gotas. Uma bruxa deu a ela uma porção mágica. Apenas cinco gotas e nada mais. Ela pingava cinco gotas no prato dele sem que ele adivinhasse. Os resultados saltaram aos olhos. Ele nunca fora tão gentil e compreensivo. Ele misturava cinco gotas em seu suco às escondidas. Era o suficiente para que ela levasse uma vida normal.

29.03.09

terça-feira, 24 de março de 2009

Alucinação I

Ela nem via ou ouvia coisas. Só as imaginava. O mundo era percebido distorcido à sua volta. Era como se ela fosse o centro do universo. Tudo girava em torno dela. Um olhar diferente ou palavra mal compreendida poderia significar o fim do mundo. Em seguia, fazia um tremendo drama. O caos estava instalado em sua cabeça. Um dia, tudo ia bem até que ele a perguntou o que andava fazendo. Eram amigos, quase amantes. Pergunta simples e sem intenção alguma. Poderia ter feito outra da mesma família, como tem passado? Soou-lhe como uma cobrança. Como queria saber tanto de sua vida? Parecia seu pai, o seu senhor eterno. Calou-se enfurecida e nunca mais o procurou. Com a melhor amiga também foi a mesma coisa. A coitada lhe disse uma verdade e foi vista como inimiga. Foi banida de seu mundo para nunca mais. Ao final só restou uma mulher confusa e solitária.

24.03.09

quarta-feira, 4 de março de 2009

A noite triste.

Ele era solitário e sentia um vazio. Ao seu chamado, ela veio imediatamente. Era meio da noite. Seu vestido provocante o fez lembrar da mãe. Ela desnudou-se lentamente à sua frente enquanto ele olhava tentando excitar-se. Sua roupa, também, foi logo posta de lado. Em seguida, ela fez o que tinha de ser feito. Entregou-se sem resistência ou desejo. Apenas o fez. Deixou que seu corpo flácido a cobrisse. Quando ela imaginava que já tinha terminado, ele começava tudo de novo e de novo, autômato, pela silenciosa e triste noite adentro. Ao fundo, Sarah Vaughan cantava Gershwin baixinho. Ele teve o seu momento de felicidade efêmera embora ilusória. Ao final, ela se recompôs e foi-se, não sem antes receber pelo serviço. Despediu-se dele deixando-o novamente no vazio da solidão de seu apartamento.

27.02.09

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

A bela adormecida – sem frescuras e nem firulas.

O feitiço de uma velha e má bruxa ruiva a fez dormir profundamente encerrada em seu majestoso castelo. Eram, então, os tempos de príncipes e virgens princesas, castelos e dragões, feitiços e contos de fadas. Ela fora esquecida placidamente em seu leito enquanto os anos se passavam. O jardim em volta do castelo tornou-se uma floresta encantada e o mato invadiu-o por dentro em cada canto. Um dia, um belo príncipe em seu branco corcel cruzando a floresta recordou-se da tal lenda. Adentrou a abandonada fortaleza encontrando a bela e adormecida virgem princesa deitada serenamente em seu dossel. Dormia profundamente como um cadáver fresco e preservado. Era tão bela que lhe provocou desejos primitivos. Sacou, então, das calças sua espada latejante e penetrou com ela a bela adormecida que não despertou apesar de tanto empurro e repuxo. Depois de saciar-se, o belo príncipe tirou o corpo e foi-se embora para nunca mais. Os dias se passaram tornando-se meses enquanto o bucho da bela princesa adormecida crescia feito uma abobora tal era o estado interessante em fora abandonada. Ao fim de nove meses uma linda criancinha saiu de entre as suas pernas enquanto a mãe inerte continuava dormindo seu sono eterno. O rebento andou feito uma lagarta procurando o peito e tudo que conseguiu foi a ponta de um dedo que chupou avidamente quebrando o encanto secular e despertando finalmente a bela adormecida num piscar de olhos. E mãe solteira e filha bastarda viveram felizes para sempre.

22.02.09

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Papel de seda.

Era uma solitária, doce e bondosa velhinha. Exatamente como seria a minha ou a sua vovozinha. Ao acordar com o trinado dos passarinhos, rezava um Pai Nosso e uma Ave Maria. Alimentava os gatos, depois fazia tudo que tinha de ser feito em sua pequena moradia. Havia umas plantinhas semelhantes a uma erva que cuidava com muito zelo numa horta no fundo do quintal. Aos domingos pela manhã ia à missa da paróquia e à tarde fazia geléia de laranja. Sua geléia era famosa e deliciosa, mimo presenteado a parentes e vizinhos escolhidos a dedo. No final da tarde, tomava um longo banho morno. Empoava-se com talco fino e passava colônia de alfazema. Sentava-se toda arrumada na cadeira de balanço na varanda do quintal com uma caixa de lata de biscoitos no colo de onde saía uma bíblia e um pacotinho de papel de seda. De outra latinha, tirava um pouquinho da erva de sua horta e a embrulhava no papel de ceda, apertava um cigarrinho. Abria a sua bíblia e enquanto lia e orava, fumava seu baseado.

17.02.09

domingo, 15 de fevereiro de 2009

No calor da noite.

De dia, era a distinta professora de música do grupo escolar da cidade. Temente a Deus. Vestia-se como uma missionária e sempre carregava o violino numa caixa branca. Não fumava, não bebia, não jogava. Único vício era o banho de cachoeira, longe de olhares curiosos. Sua pequena casa era graciosa com um jardim de rosas na frente. No quintal, um estreito portão de ferro dava acesso ao atalho tortuoso para uma escondida cachoeira. Vivia apenas com três gatos. Dormia em cama de solteiro. A rotina diária era a mesma. Manhã, na escola, as tardes eram das roseiras e as noites do violino. Sábado, a faxina e a feira no largo. Domingo, a igreja pela manhã e o descanso merecido à tarde. Já bem tarde, em noites de lua cheia e calor, era arrebatada por um frêmito enquanto a cidade sonhava profundamente. A distinta professora escapulia pelo portão dos fundos e ia de fininho até a cachoeira no meio do mato, guiada pelo luar. As roupas eram postas cuidadosamente dobradas sobre uma pedra. Sentava-se em outra, sob a queda d'água a beijar-lhe entre as pernas e provocar-lhe inconfessáveis ondas de prazer.

14.02.09

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Sem quebra gelo.

O silêncio era sepulcral. Numa mão, agulha, linha e artrose. Na outra, um retalho para ser remendado a outro. A luminária ao lado piscava vez por outra ou seriam já seus olhos? Sua respiração era suave, o olhar perdido e melancólico era solitário. Os pensamentos visitavam um tempo distante. As lembranças do passado eram recorrentes embora nem lembrasse que dia era hoje. Ela era jovem, então. Ele tinha quase a mesma idade, só um pouco mais velho e era o dono do mundo. Ardia de paixão incontrolável por ele. Ela era imatura, mimada. Deveras orgulhosa. Um dia ele disse-lhe uma coisa. Ela entendeu outra e não gostou. O mal entendido não foi desfeito. Ao contrário ficou como estava. Criou-se uma tensão que os separou silenciosamente. Nunca houve o pedido de desculpas, a retratação. Nenhum esforço de reconciliação. Apenas o silêncio reprimido e empáfia. Os dois se amavam, mas um esperava o outro quebrar o gelo. O tempo foi passando e no final só restaram dois velhos solitários. Ela ocupava seu tempo fazendo colchas de retalhos. E ele tentava lembrar as feições belas daquela jovem que tanto amou.

06.02.09

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Viagem.

Ele vai para longe. Bem longe. Finalmente, a viagem de férias sonhada. Nos lábios, um suave sorriso de satisfação. A vida inteira pensara nisto e finalmente aconteceria. Estava todo arrumado como no dia do casamento. A companheira de tantos anos não iria junto desta vez. Por isso choramingava. A casa transbordava de amigos. Vieram se despedir. Conversavam baixo, lembravam de estórias engraçadas. Reminiscências de anos de camaradagem. Tomavam café, água e bebidas pesadas. Na mesa comedida, alguns acepipes para matar a fome. O anfitrião estava tranqüilo. Dava atenção a todos e era o centro das atenções. Quando chegou a hora, o ataúde foi lacrado e levado pelos amigos ao cemitério. Sua jornada começara. Ou talvez terminasse ali, quem sabe.

08.02.09

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

No mundo da lua.

Era tão linda que doía. No rosto, o sorriso senil de sempre. De que sorriria tanto? Na cabeça, um vácuo. Achava tudo lindo. Uma perfeita idiota feliz. O olhar perdido, às vezes triste. Ele a viu uma vez, não a esqueceu mais. Como podia ser tão linda e feliz o tempo todo, pensou. Quis vê-la mais vezes. Encontrou-a certo fim de tarde sentada no gramado assistindo o por do sol. O que está fazendo, perguntou curioso. Vendo o por do sol, respondeu alegre. Como é lindo, acrescentou. Mal se falaram enquanto isso. Muda, contemplava o por do sol como se fosse o ultimo da face da terra. Ele foi embora depois disso. Voltou à noite. Ela continuava no mesmo lugar. E agora? Perguntou. Agora estou vendo a lua, respondeu com um largo sorriso e olhar iluminado.

29.01.09

sábado, 31 de janeiro de 2009

Porcelana de família.

As canecas foram presente da sogra. Uma para ele e a outra para ela. Horríveis, pesadas e extravagantes. Ensaiaram um sorriso que saiu amarelo. Agradeceram muito. Ao final do dia, a sogra saiu por uma porta e as canecas por outra, direto para a garagem. Esquecidas. Talvez evaporassem um dia. O bizarro presente rendeu risadas, como eram feias as tais canecas. A sogra voltou e também as canecas. Passearam de bandeja até a sala de visitas. Beberam chá nelas. Nada mal. Levemente pesadas. Mantinha o chá quente mais tempo. O colorido berrante até estava na moda, segundo a revista. Não eram tão ruins assim. Pelo menos o chá ficara quente mais tempo. A sogra foi embora e as canecas foram paro o armário da cozinha. A cristaleira era para os cristais e porcelanas finas. O frio veio de fininho. O frio era foda. A ele, nem chá ou café ou chocolate quente resistiam. Ah! Aquelas canecas. Bem lembrado! Os dois monstrinhos mantinham tudo quentinho. Um milagre. Do que seriam feitos? Todos os dias iam do armário para a mesa e depois voltavam. Um aviso foi dado à empregada. Muito cuidado com minhas canecas, tenho muito ciúmes delas. Depois de lavá-las com dobrado zelo, iam para a cristaleira graças à empregada.

27.01.09


sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Coisa de criança.

Era sempre a mesma estória. Depois da porrada oral, ignorava-o semanas. Ela apreciava um bate-boca. Nutriam-se disso. Funcionava assim, ele telefonava, ela não atendia. Birra. Coisa de criança. Dava certo. Ele sempre acabava rastejando. Ela se sentia orgulhosa. Poderosa. Fazia o mesmo com o 'papai sabe tudo' desde menina. Aprendera manipulá-lo antes de experimentar em seus homens. Faziam as pazes, rolava muito pé de cama. A mesa e o chuveiro também serviam. Era a vez de ele ir à forra, era o prazer dela a submissão. Com o pai não rolava nada daquilo. Uma pena, era pecado. Pai e filha eram tão iguais que brigavam como se amavam. Na adolescência, fugia de casa. Continuou fugindo adulta, mesmo que a porta sempre estivesse aberta. Era sempre a mesma menininha, recusara-se a crescer. Falava como menininha. Tinha jeitinho de menininha, dentro de um mulherão. Um dia teve um puta de um susto. Com ele brincara de papai e filhinha malcriada depois do bate-boca. No final, ganhou uma bonequinha. Mas teve de esperar nove meses para tira-la da caixa.

26.01.09

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Futuro a domicílio.

Acordou mal humorada. A boca azeda de esperma. Uma suave brisa entrava pela fina cortina da janela deixada aberta. Levantou-se. Esticou-se e foi no banheiro. Roupas pelo chão. Pontas de cigarro. Resíduos da noitada. Doía-lhe a buceta. Aquele puto. Sentia-se imunda. Jogou uma água no corpo. O sabonete novo foi esfregado até sumir. Não pensou na noite passada. Não quis isso. Recriminava-se. Tinha contas a pagar, lembrou. Devia a um, devia a outro. Quando isto vai acabar? A mão de xampu cheia fez abundante espuma no cabelo crespo. Gostava disso, dava-lhe prazer. Queria ser leve como a espuma. Flutuar. A água fria corria solta. Quis descer também pelo ralo e sumir de vez. Virou a torneira até estancar a água. Agora o dia já podia começar pra ser feliz. Enrolou-se na velha e macia toalha. Quando tomaria vergonha para comprar uma nova? Um café ia bem. No caminho da cozinha viu a grana jogada na mesa. Contou. O sangue subiu, só tinha a metade. Aquele desgraçado! Merda de vida. Vestiu-se rápido, foi encontrar o cliente das onze. Todo dia era a mesma coisa por troca de migalhas. Devia arranjar um emprego de verdade, um desses de carteira assinada com plano dentário, como todo mundo. A ruiva era cartomante a domicílio e já estava atrasada para prever o futuro.

23.01.09